domingo, 23 de fevereiro de 2020

"NÃO CHORA FILHA, PAPAI NÃO QUER TE MACHUCAR. SÓ ESTAMOS BRINCANDO!"

Quando eu tinha cinco anos meus pais se separaram. Nós morávamos com meus avós maternos. Depois da separação, minha mãe foi morar em outra cidade, com o novo marido, mas meu pai continuou conosco, na casa dos meus avós, para ajudar a cuidar de mim e de minha irmã, pois meus avós trabalhavam. Meu pai, eu e minha irmã dormíamos no mesmo quarto. Ele na rede, e nós na cama. Até aí tudo bem. Mas quando eu tinha 8 anos ele começou a abusar sexualmente de mim.

No começo eram apenas toques e carícias incomuns. Depois vieram beijos forçados e estupros. Naquela época eu que não tinha a menor noção de que aquilo era abuso sexual.  Na hora dos abusos, ele pegava minha irmã, já sonolenta, e colocava na rede. Ela não tinha percebia o que estava acontecendo, seja em razão do sono, seja em razão da idade, pois tinha apenas seis anos.  Eu chorava, mas ele abafava o som do meu choro colocando um pano na minha boca. Nunca esqueço da frase que sempre usava: “não chora filha, papai não quer te machucar. Só estamos brincando”.

Meu sofrimento era grande, mas eu não podia desabafar com ninguém pois ele me ameaça de morte, e dizia que iria fazer a mesma coisa com minha irmã.  Eu tinha muito medo. Eu não queria que minha irmã passasse pelo que eu estava passando.

Quando eu tinha doze anos assisti a uma palestra na escola tratando do assunto. Foi quando tive a certeza que o meu sofrimento tinha nome. Procurei minha professora e contei o que estava acontecendo. Ela falou para outra professora, e começaram os procedimentos. O caso foi levado ao conselho tutelar. Foram tomados os depoimentos e o processo está andando, a passo de tartaruga, como outros processos dessa natureza. O processo de meu abusador se arrasta há seis anos.  Ele nunca foi preso. Já teve audiência, ouviram as testemunhas, mas não teve o primeiro julgamento.  Sempre procuro saber do andamento do processo, mas o pessoal da justiça não dá muitas informações. No começo eu não estava acreditando muito, mas como apareceu outra vítima, agora acredito que um dia será feito justiça.

Depois que o caso foi revelado, ele saiu de casa. Cessaram-se os abusos, mas o sofrimento psicológico aumentou. Aumentaram as ameaças de morte. Ele passou a rondar minha escola. Mas não ficou apenas nas ameaças. Ele tentou me matar algumas vezes.

Foi difícil e continua sendo. Tive todo o apoio da escola, e do Conselho Tutelar, mas não tive apoio da família. O único apoio familiar que tive foi do meu avô. Ele continua me apoiando. Meus tios não falam muito sobre o assunto.  Entretanto, o que mais me dói é a falta de apoio da minha mãe. Mesmo sabendo que meu pai era violento, pois esse foi um dos motivos da separação, ela ficou do lado dele. Continuou sua vida lá no outro município. Nem ao menos se deu ao trabalho de ir me ver. Ao contrário, chegou a me ligar para dizer que se ele fosse preso e fizessem algo com ele na cadeia a culpa seria toda minha.

Ainda hoje me pego chorando, quando lembro do ocorrido. Sei que os traumas nunca vão passar.  O tempo ameniza a dor, mas a tristeza nunca vai embora. Durante muito tempo não conseguia ficar perto de pessoas do sexo masculino. Hoje já consigo ter amigos homens, mas não consigo ter relacionamentos afetivos. Já tentei. Cheguei a ter um namorado, mas não durou muito. Os traumas atrapalharam nosso relacionamento. Depois dessa experiência frustrada, não procurei me relacionar afetivamente com mais ninguém.

Depoimento de uma jovem de 19 anos. 

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