domingo, 9 de fevereiro de 2020

"FUI ABUSADA E OBRIGADA A ASSISTIR ABUSO DE CRIANÇAS NA ESCOLA POR DIRETOR E PADRE"

Biani López Antúnez conta que foi abusada quando tinha entre 8 e 10 anos
e diz que até hoje está 'quebrada' por dentro —
Foto: Ana Gabriela Rojas via BBC
Num mundo cheio de violência, é natural que os pais busquem as melhores formas de proteger seus filhos de qualquer mal que possa atingi-los. Para muitos, escolas dirigidas por religiosos parecem ser locais seguros. Porém, nos últimos anos, tem vindo a público muitos casos de violência sexual praticados por pessoas ligados as igrejas de várias religiões.

Quando se trata de violência sexual, todo cuidado é pouco pois, na maioria das vezes, os abusadores são pessoas em quem as crianças e adolescentes tem confiança ou temor, e muitos deles gozam de respeito e prestígio perante a sociedade. Por isso, é preciso estar sempre atento a qualquer comportamento suspeito das pessoas que convivem com crianças e adolescentes, mas principalmente aos sinais manifestados pelas possíveis vítimas. Para compreender esses sinais é preciso estudar bem o assunto, e ficar atentos aos relatos das pessoas que já sofrerem violência, para entender como agem os abusadores.

Atualmente, muitas pessoas famosas tem relatado parte das violências sexuais sofridas na infância, o que tem encorajado outras vítimas a também relatarem seus sofrimentos. 

Uma dessas vítimas foi a museóloga Biani López Antúnez, de 37 anos, que conta ter sido abusada entre os 8 e 10 anos de idade. Ela é mais uma vítima   da horrenda história sobre de  abusos que sofrem, há cerca de 60 anos,  crianças e adolescentes atendidas pelo grupo católico "Legionários de Cristo". Em dezembro de 2019, o grupo admitiu que 175 crianças foram abusadas por membros de sua congregação entre 1941 e 2019. Entretanto, os depoimentos das vítimas dão conta de que esse número pode ser bem maior. Transcrevemos, abaixo, parte do depoimento de Biani, publicados nos há dois dias nos principais meios de comunicação:

"Eles me matricularam em uma escola dos Legionários de Cristo, sem imaginar os terríveis abusos que eu sofreria nas mãos do padre e diretor Fernando Martínez.
A escola estava em construção quando as aulas começaram. Eu tinha oito anos e entrei na terceira série.
Hoje sabemos que Martínez havia sido nomeado [diretor] apesar de [na época] já ter sido acusado de abusos sexuais em outros colégios da Cidade do México e de Saltillo.
Ele próprio havia admitido uma acusação de 1991 e até pediu para não ser transferido a Cancún porque não se sentia "firme" para aceitar a responsabilidade [de dirigir uma escola] depois dessa acusação.
Mesmo assim, os legionários colocaram meu colégio nas mãos de um predador sexual, que continuou com seu comportamento criminoso.
Martínez foi ganhando a nossa confiança e aumentando seus abusos gradualmente.
Começou com beijos na bochecha que dava cada vez mais perto da nossa boca, como se fosse sem querer.
E foi subindo de tom, com abusos mais graves, até que chegou a nos estuprar. E fez isso várias vezes.
Tinha um conluio com uma professora, que tirava um grupo de três meninas das salas e nos levava à direção ou à capela. Ali, fechavam as cortinas, as portas, e [ele] nos fazia todo o tipo de coisas horríveis.
Às vezes nos fazia ler a Bíblia, nos dava hóstias ou brincava com os símbolos sagrados, para nos distrair, nos confundir e poder nos abusar.
Nós saíamos chorando, e ninguém dizia nada.
Ele me abusou durante dois anos, dos 8 aos 10. Além disso, ele me fazia ver como abusava das outras meninas.
Foi terrível. Eu era muito pequena e não entendia o que estava acontecendo. Ele era uma figura de autoridade total. Era o padre da escola, que supostamente representava Deus.
Além disso, ele era a figura máxima de autoridade dentro da escola. Como aquele senhor poderia fazer algo ruim?
Eu chorava muito. Todas nós chorávamos. Lembro que me trancava no banheiro da escola e chorava e chorava. Voltava às aulas, encostava na carteira e continuava chorando.
Pouco a pouco, tomei consciência de que estava sendo abusada. Não aguentava minhas emoções e meu corpo.
Tenho lembranças muito vívidas de certos abusos. Lembro muito bem a vez em que ele me fez testemunhar o estupro de uma menina mais nova que eu, na capela da escola. Ali percebi que aquela menininha estava sofrendo e que eu tinha que fazer algo para protegê-la.
Em uma ocasião, uma professora da escola entrou no banheiro e viu o nosso grupo de meninas chorando. Ela nos perguntou o que tinha acontecido, e dissemos que não podíamos falar.
Ela nos pediu que escrevêssemos uma carta.
Eu a escrevi, mas a dirigi à minha professora, Lorena.
Além dos beijos, consegui articular que ele nos segurava entre as pernas. Na nossa mente infantil, era difícil discernir que a professora Aurora era cúmplice dele e que nos levava a ele com conhecimento de o que ele nos fazia.
Dessa forma, contamos a ela [Lorena] o que estava acontecendo. Ela nos disse que ia solucionar, mas pediu que não contássemos a nossos pais. Mas foi justamente isso que fizemos.
Disse à minha mãe, e ela contou às outras mães das meninas que eu sabia que estavam sendo abusadas.
Elas falaram com Eloy Bedia Diez, que era o novo diretor territorial dos Legionários, em junho de 1993.
Hoje sabemos que, já em dezembro de 1992, Ana Lucía Salazar [hoje apresentadora de rádio e TV no México], que era um ano mais nova que eu, havia contado a seus pais que Martínez a abusava repetidamente. Ele a estuprava sozinha.
Quando eles falaram com Martínez, ele respondeu que ela "havia mal interpretado tudo".
Eles também falaram com Bedia e com o bispo [de Cancún-Chetumal] Jorge Bernal, que não fizeram nada. Certamente pensaram que a denúncia de uma única menina não lhes causaria problemas.
Os pais dela a tiraram da escola e se mudaram para a cidade de Monterrey.
Quando nós quatro também o acusamos, Bedia informou aos pais dos alunos que Martínez já não estava mais em Cancún. Sabemos que tiraram ele do país e o levaram a Salamanca, na Espanha, onde o colocaram em um seminário, também em contato com menores.
Ana Lucía Salazar, hoje apresentadora no México, foi a primeira a denunciar os abusos
Bedia escreveu recentemente que, depois de se reunir com nossas mães, esteve com todos os pais das crianças da escola.
O que ele não diz é que, para essa segunda reunião, não convidou as mães das vítimas. E para os demais contou uma história diferente: disse que Martínez teve de sair do México por causa de um problema no coração e que ele seria operado em Miami.
Com Martínez fora do país, meus pais sequer puderam denunciá-lo legalmente".
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