Reportagem publicada por EcoDebate
Dados inéditos reunidos
pelo Itaú Social expõem a desigualdade educacional entre os extremos das
classes sociais no país. Estudo analisou os perfis de crianças de 0 a 14 anos,
com famílias em extremos de renda no Brasil, com média per capita de R$ 145 e
R$ 6.929.
Horas de leitura e
brincadeiras em família é 43% superior para o segundo grupo e o acesso à
internet, 148%. Em relação às horas de aprendizado a partir das atividades
extracurriculares, como idiomas, artes e esportes, a diferença chega a 1.038%.
Mesmo na educação formal,
o acesso à aprendizagem é 17% menor para as crianças de famílias mais
vulneráveis. Atividades estruturadas nas férias escolares somariam 2.232 horas
de aprendizado para o grupo mais abastado, contra zero para os que estão na
base da pirâmide.
Estudante do nono ano do
Ensino Fundamental de uma escola privada, Nilo é filho único de pais
empresários. Quando era criança, seu pai adorava ler livros e contar histórias
de heróis para o menino dormir. Sua mãe também gostava de propor novas
brincadeiras para ajudar no seu desenvolvimento. Agora, com 14 anos, o
adolescente concilia as aulas de inglês, natação e guitarra na sua agenda.
Antes da pandemia, frequentava cinema ou teatro aos fins de semana e nas férias
aproveitava uma colônia com seus amigos escoteiros.
Caíque, estudante do nono
ano do Ensino Fundamental de uma escola pública, tem uma rotina bem diferente.
Ele conta que a mãe nunca leu um livro para ele. Como ela trabalhava o dia todo
em uma indústria, ficava bem cansada e não tinha muito tempo para brincar e
dividir a atenção com os quatro filhos. Aos 14 anos, o menino queria frequentar
a escolinha de futebol, mas o orçamento da família não permitia. Aulas de
inglês somente na escola, uma vez por semana. Foi no cinema uma vez na vida,
mas ainda não teve a chance de ver uma apresentação teatral. Nas férias, sua
diversão é ficar entre os amigos e aproveitar a internet dos vizinhos, já que
em sua casa não tem banda larga.
Os personagens são
fictícios, mas o impacto socioeconômico na vida dos estudantes é real. O estudo
inédito “Cada Hora Importa”, realizado pelo Itaú Social, demonstra que ao final
do 9º ano do Ensino Fundamental, crianças como Caíque, com famílias de baixa
renda, recebem 7.124 horas de aprendizado a menos do que meninas e meninos como
o Nilo, que têm famílias mais abastadas. Esse período equivale a 7,9 anos de
uma escola regular.
O estudo, com apoio do
Plano CDE, foi baseado no parâmetro internacional “Every Hour Counts”, que
defende o aprendizado fundamentado no pensamento crítico, resolução de
problemas, eficiência na comunicação e conhecimentos gerais. A iniciativa tem
como objetivo promover a educação integral, que considera as diferentes
dimensões do sujeito, criando oportunidades que contemplem suas necessidades
cognitivas, mas também físicas, sociais e emocionais.
Os pesquisadores usaram
como base de cálculo cinco levantamentos com abrangência nacional para estimar
as horas de aprendizado: PNAD 2019 (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios); POF 2017-2018 (Pesquisa de Orçamentos Familiares); Censo Escolar
2019; o estudo Primeiríssima Infância – Interações 2020 (Fundação Maria Cecilia
Souto Vidigal) e TIC Domicílios 2018.
“O estudo dá forma e
quantifica a enorme desigualdade educacional no Brasil. As estimativas revelam
um volume impressionante de horas adicionais de exposição a oportunidades de
aprendizagem para crianças de famílias com mais recursos, em comparação às
crianças de famílias de baixa renda”, aponta a superintendente do Itaú Social,
Angela Dannemann. “Os dados comprovam a importância das escolas em tempo
integral e do trabalho das organizações da sociedade civil, que oferecem
atividades em contraturno escolar, para ampliar o acesso à arte, à cultura, aos
esportes e tantos outros elementos que permitem o desenvolvimento integral e
plural das crianças e adolescentes, que irão lhe conferir o exercício pleno da
cidadania”, explica.
O estudo analisou os
perfis de crianças de 0 a 14 anos, com famílias em extremos de renda per capita
no Brasil. A amostra foi dividida em dois grupos: os que integram os 10% com
menor renda (média per capita de R$ 145) e os 10% que estão entre os de maior
renda (média per capita de R$ 6.929). As oportunidades de aprendizado foram
separadas em cinco categorias: aprendizado em família, aprendizado via
internet, educação formal, atividades extracurriculares e oportunidades nas
férias.
Aprendizado em família
Considerando a pesquisa
“Primeiríssima Infância”, o estudo fez uma estimativa de horas usando como base
a frequência de leitura e brincadeira com crianças em dias por semana. As
famílias mais ricas leem duas vezes mais para suas crianças do que as mais
pobres (quatro horas semanais contra duas horas). Já a diferença de horas
quando falamos de brincadeiras em família é menor (seis contra cinco horas).
Porém, ao somar o número de horas das duas atividades em um ano, as crianças de
famílias com maior renda abrem uma frente de 43% em relação às de menor renda.
Aprendizado via internet
O estudo considerou a
pesquisa “TIC Domicílios”, que investiga o acesso e os hábitos dos brasileiros
em relação ao uso da internet, para verificar a quantidade de horas que as
crianças realizam atividades, pesquisas escolares e/ou estudam por conta
própria. As famílias com rendas menores têm, num período de 5 anos, apenas 560
horas de aprendizado na internet, contra 1.390 horas daquelas com maior renda,
o que equivale a uma diferença de 148%.
Educação formal
Com os dados do PNAD e do
Censo Escolar, o estudo analisou o acesso e a carga horária de escolas e
creches públicas (para famílias com menor renda) e particulares (para famílias
com maior renda) para calcular a média de horas de aprendizado em educação
formal. Crianças mais pobres, principalmente quando estão em creches e na
pré-escola, têm menos acesso ao aprendizado do que as mais ricas. Em um total
de 14 anos (duração da educação infantil até a conclusão do ensino
fundamental), a diferença de horas é de 11.719 versus 13.713 horas, o que
corresponde a uma diferença de 17% a mais para crianças de maior renda.
Atividades Extracurriculares
A partir dos dados da POF
(Pesquisa de Orçamentos Familiares), os pesquisadores verificaram os gastos
extracurriculares como cursos de idiomas, artes e esportes. Considerou-se que a
carga horária padrão para cada curso é de duas a seis horas por semana. As
informações do POF também permitiram identificar os gastos individuais das
famílias com itens de diversão fora de casa, coletando dados sobre gastos com
cinema, museu e teatro.
Considerando 11 anos de
atividades extracurriculares, enquanto famílias mais ricas têm uma carga média
de horas em aulas de idiomas de 236 horas, as mais vulneráveis têm apenas 11
horas. Também existe um abismo na exposição às atividades relacionadas às artes.
Crianças de famílias de baixa renda têm apenas 12 horas de acesso contra 287
horas para as do grupo de alta renda. As horas no cinema são bem inferiores
(168 horas para famílias ricas e 66 horas para famílias pobres), assistir a uma
peça teatral ou visitar um museu são atividades que não ocorrem, pelo menos de
forma paga, para crianças pobres. Ao todo, as horas de aprendizado a partir das
atividades extracurriculares chegam a uma diferença de 1.038%
Oportunidades nas
férias
O estudo considerou ainda
as atividades estruturadas nas férias escolares, como programações em clubes,
colônias de férias, excursões ou outras atividades e cursos pagos nas próprias
escolas. Famílias mais ricas proporcionariam 2.232 horas a mais de aprendizado
para suas crianças no acumulado de nove anos, enquanto as mais pobres não
promoveram nenhuma atividade nos intervalos dos anos letivos.