São deixados sozinhos em casa. E logo saem para a rua, sozinhos ou na companhia de outras crianças. Horas a fio sem supervisão e cuidado de adultos. Cabo Verde congratula-se por, alegadamente, não ter crianças de rua. Mas parece haver um aumento de crianças que deambulam nas ruas, muitas vezes pedindo dinheiro, por vezes até com incentivo da família...
João,
chamemos-lhe assim, não tem mais do que 12 anos. São 20h00 e está sozinho na
zona de Quebra-Canela, pedindo dinheiro ou comida a quem frequenta os bares da
zona. A mãe? Está a trabalhar, diz. O pai também. Em sua casa não está ninguém.
O
cenário repete-se, com algumas variações, durante todo o dia, em várias zonas
da Cidade da Praia. Crianças, geralmente acompanhadas de outras crianças, pedem
dinheiro, guloseimas ou comida junto a cafés e outros espaços comerciais. Vêm
de vários bairros, para as zonas com maior poder económico. Algumas não terão
mais de 4, 5 anos e são mandadas por outras, maiores, expectantes da maior
chance de sucesso dos mais pequenos.
Geralmente
pedem, mas há também os que furtam. A ocasião faz mesmo o ladrão. Muitas vezes
o objecto do roubo é apenas o que está à mão, nem que seja de pouco valor. Mas
também são roubados telemóveis e outros produtos mais caros. A G., no
Palmarejo, um miúdo que não teria mais de 11, 12 anos passou a correr pela mesa
de café onde estava sentado e levou-lhe o móvel. G. correu no seu alcance,
apanhou o rapazinho e conseguiu recuperar o aparelho. Nem chamou a polícia.
Para quê?, questiona.
Cometendo
pequenos crimes ou simplesmente pedindo dinheiro, o fenómeno de crianças que
deambulam pelas ruas da capital nas férias lectivas é antigo e recorrente. Mas
após uma certa melhoria nos últimos anos, este Verão parece haver um aumento de
crianças nas ruas.
Aumento de “pedintes”
O
Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA) tem trabalhado no
terreno e garante que, neste momento, não há crianças “de” rua na capital. Ou
seja, não há crianças que vivem na rua e não têm uma casa ou outro espaço onde
ir. O que há são crianças “na” rua. Crianças que deambulam largas horas pelas
vias públicas sem supervisão de maiores. Um fenómeno que, como referido,
incrementa na época das férias escolares.
Falar
em aumento este ano, em relação ao passado recente, é algo que é reconhecido
com cautela. Fala-se em um aumento “ligeiro” de crianças a pedirem nas ruas,
algo que, aliás, organizações que trabalham com crianças como o ICCA e a
ACRIDES já temiam face à pandemia.
Contudo,
refere Etsânia Andrade, do Centro Nôs Kasa do ICCA, na Praia, não serão muitos
casos e acredita-se que estarão todos assinalados.
“Essas
crianças estão identificadas. Às vezes as mesmas crianças estão no Plateau, na
Prainha, no Palmarejo… No Palmarejo, por exemplo, não temos mais do que cinco
crianças” nessa situação, aponta, salvaguardando que “não são crianças que
dormem na rua”.
Quando
se faz a identificação, as famílias são procuradas e questionadas sobre o
“porquê dessa criança estar a pedir na rua”.
Nem
sempre se resolve a situação. Às vezes são até os próprios pais que a
estimulam.
“Parem de dar dinheiro às crianças”
Retirar
as crianças da rua é um desafio enorme, mas que tem de ser vencido, sob pena de
maiores perigos directos ou indirectos.
Recentemente,
a presidente do ICCA, Maria do Livramento Silva, em entrevista à Inforpress,
assumiu que era preciso fazer frente à situação de crianças a pedir “o mais
rápido possível”.
Um
dos passos dados para a combater é o “Projecto de reforço e capacitação de
crianças na rua” financiado pela ONG dinamarquesa BORNEfonde e coordenado pela
equipa do Nôs Kasa – o centro do ICCA que trabalha com crianças em situação de
rua. O projecto, em andamento, vai levar a cabo acções de sensibilização e
capacitação de crianças e adolescentes na rua, e familiares.
Um
dos pontos do projecto é uma campanha dirigida à população para que não dê
dinheiro aos menores, e que neste momento a equipa do Nôs Kasa, no terreno, com
foco nos locais comerciais, está a promover.
Aqui,
é de lembrar, que esta não é uma “batalha” nova das instituições. Há alguns
anos também as Aldeias SOS lançaram uma campanha, no Mindelo, sob o lema “ “Não alimente a esmola. Alimente o futuro”.
Dar
dinheiro, é incentivar a permanência nas ruas.
Uma
das problemáticas interligadas com o fenómeno de crianças na rua é o abandono
escolar.
“Abandonam
a escola para irem pedir dinheiro, é isso que a sociedade tem que ver”, vinca
Etsânia Andrade.
E
ao contribuir-se potencialmente para o abandono escolar, contribui-se para uma
maior exposição aos perigos da rua, e futuramente para uma vida de profissões
precárias ou uma voltada para práticas de sustento ilícitas.
Há
locais próprios para apoiar essas crianças, trabalhando o seu bem-estar
imediato a par do seu futuro. Nôs Kasa é um deles.
O
Centro está aberto das 8 às 17h, e aí são dadas às crianças que o frequentam
três refeições diárias. Do Centro, é suposto irem para casa. Algumas não vão.
Ficam
na rua a pedir dinheiro, ou algo que é mais difícil negar: comida.
“Ficam
à noite a pedirem comida, mas garantimos que as necessidades dessas crianças
não são comida. Mesmo quando vão para casa damos-lhe comida, e costumamos
apoiar a família através de cabaz social”, justifica a técnica.
“O
objectivo de estar na rua não é para pedir comida, mas sim dinheiro”, garante.
Cada
vez que se dá dinheiro, o ICCA e outras instituições vê o seu trabalho
dificultado, alerta ainda.
O
que fazer então, quando se quer ajudar? “Primeiramente, não oferecendo
dinheiro”, insiste. Depois, pode-se denunciar o caso para o 8001020 (ICCA) ou
132 (Polícia Nacional) ou levar informações sobre a criança ao próprio Nôs
Kasa.
Famílias
A
família é a base de tudo. Assim, é incontornável, e consensual, capacitar e
empoderar as famílias.
Mas
falando em famílias, há uma outra questão a assinalar. Muitas vezes é a própria
que incentiva as “crianças a irem para a rua pedir, para trazer dinheiro para
casa”, numa inversão ou perversão do papel do provedor[a] do lar.
Tal
situação configura mesmo Trabalho Infantil, outra problemática que há anos se
tenta combater e na qual Cabo Verde tem tido algum sucesso.
Entretanto
seja por incentivo familiar, seja de mote próprio, a posição do ICCA, expressa
também pela sua presidente, Maria do Livramento Silva, é de uma maior
responsabilização.
“Mais
do que nunca, há uma maior necessidade da existência de uma lei que penalize os
pais e encarregados de educação sobre as responsabilidades para com os seus
filhos menores”, afirmou, à Inforpress.
Na
verdade, reconhecendo-se a grande dificuldade que muitas famílias têm em
conseguir garantir o sustento da casa, o discurso muitas vezes tem sido
centrado nessas dificuldades, esquecendo a responsabilidade que todos os pais
têm em relação aos seus filhos.
A
pobreza é razão de inúmeros problemas, que compete ao Estado colmatar com
políticas acertadas, mas não pode ser pretexto, para tirar os deveres aos pais.
Tal como não pode ser para retirar os seus direitos.
Assim,
mesmo sem dinheiro cabe-lhes, a eles, procurar alternativas para os cuidados
dos filhos. E ao Estado, criá-las. Ambas as partes têm de funcionar, nenhuma
pode ser omissa nas suas responsabilidades.
Cuidar do futuro
“Se
não cuidarmos dessas crianças pelo positivo, há quem vá cuidar pelo negativo”,
sintetiza o Pastor nazareno Licínio Lopes, que trabalha há vários anos com
crianças e jovens em situação de risco, principalmente no bairro do Brasil
(Achada Santo António).
Não
obstante concordar com a responsabilização das famílias, o activista coloca a
tónica na responsabilidade do Estado, que não pode enfraquecer. No seu
entender, embora subscreva que não se dê dinheiro às crianças, se não houvesse
crianças na rua, esse apelo era desnecessário. Cabe pois, neste caso o ICCA,
“que tem responsabilidade maior”, “trabalhar as políticas para a Infância”. Se
há tantas crianças na rua, é sinal de que essas políticas, pontes e trabalho de
algum modo estão a falhar, critica.
Neste
momento, o pastor está a trabalhar com um grupo de jovens “que está a criar
problemas nas comunidades”. Isso acontece “porque falhamos em relação a esses
meninos que há anos tinham 11, 12 anos e estavam na rua. Agora estão com 16,
17”. O mesmo acontecerá no futuro se a situação de hoje não se resolver.
E
no patamar intermédio entre Família e Estado, ou seja, nas comunidades,
encontram-se respostas importantes e que em muito podem apoiar o trabalho do
Estado…
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Colónias de férias e o importante trabalho
comunitário
Lidam
com a situação sanitária, ainda instável, e principalmente com a falta
(ou demora) de financiamento, mas não baixam os braços. Várias associações
comunitárias da Cidade da Praia estão a promover colónias de férias e
actividades, cuidando e entretendo as crianças neste período. Entretanto, todos
parecem concordar que houve um aumento de crianças na rua, e urge reverter a
situação.
Uma
das medidas que ajuda, e muito, a manter as crianças fora das ruas nas férias
lectivas, são as colónias de férias.
O
próprio Centro Nôs Kasa, por exemplo, tem a decorrer uma colónia, aponta a
coordenadora Etsânia Andrade. “Temos plano de actividades para todas as
crianças identificadas. Estão inseridas em aulas de música, capoeira, artes
plásticas…”
E
em várias comunidades, apesar das dificuldades e parcos financiamentos, lutando
contra as falhas das políticas públicas há colónias e actividades. Em Ponta
d’Água, a Maracaná está a fazer “um excelente trabalho”, avalia Licínio Lopes.
Em Kelem está também a ser trabalhada uma colónia de férias.
No
bairro do Brasil, continua o pastor, que é também coordenador do Centro
Intervenção Bairro Brasil (CIBB), decorreu uma colónia até fim de Julho.
Neste
momento o CIBB está a ser financiado essencialmente por um casal francês, juntamente
com a FICASE, revela.
Muitas
outras zonas não conseguiram organizar colónias, devido à crise causada pela
pandemia e falta de apoio.
Entre
as que conseguiram estão Safende e Achada Grande Frente.
Infância Segura
A
Associação Comunitária Amigos de Safende (ACAS) está a promover, à semelhança
de outros anos, uma colónia de férias na Kaza di Amizadi.
O
objectivo é o de sempre: acolher as crianças, dar-lhes uma refeição, tirá-las
da rua.
Assim,
cerca de 50 crianças do bairro, entre os 4 e 15 anos, frequentam actualmente a
colónia que vai ter a duração total de dois meses.
No
ano passado, a colónia foi apoiada pela Primeira-dama, Lígia Fonseca. Este ano,
como conta a coordenadora da Casa de Amizade, Larinha Alves, foram enviados
pedidos a várias entidades, mas ainda não houve respostas.
Na
verdade, a colónia anual é agora parte de um projecto muito mais abrangente,
chamado Infância Segura e recentemente lançado pela ACAS.
É
um projecto “para muitos anos”, explica Larinha Alves, e que aborda múltiplas
vertentes. Do acolhimento das crianças, à prevenção da gravidez na
adolescência, entre várias outras.
“Infância
Segura” vai trabalhar então para que Safende seja um bairro seguro, onde as
crianças podem viver da melhor maneira possível, juntamente com os pais”. E
porque os “pais também são responsáveis”, o projecto tem também um foco forte
nas famílias.
“É
na família que temos que trabalhar para que tenhamos um futuro melhor para as
crianças”, sublinha.
Para
Larinha Alves, entretanto, não há dúvida de que houve um aumento de crianças na
rua.
Apesar
dos esforços, há crianças de Safende na rua e a pedir dinheiro em outras zonas
“principalmente no Plateau”.
“Por
causa da pandemia, houve um agravamento muito grande. As coisas pioraram,
muitos pais ficaram sem emprego. Mas há também a questão do álcool e da droga.
Pais que têm esse problema e não conseguem tomar conta dos filhos. As crianças
ficam vulneráveis, na rua e fazem o que querem, abandonam a escola, às vezes
dormem na rua…”, conta.
“A
Casa de Amizade, está a tentar diminuir isto, mas sozinhos não conseguimos. É
um problema de todos”.
Pilorinhu
Como
tem vindo a repetir ano após ano, face a todas as adversidades, a Associação
Pilorinhu, em Achada Grande Frente, tem em curso, até 11 de Setembro, a sua
colónia de férias. Nela participam 85 crianças, dos 5 aos 18 anos, divididas em
grupos, que aí ficam das 9h às 16h.
Também
a Pilorinhu não teve financiamento, apenas alguns apoios locais. “Fazemos
sempre com os recursos que temos” e com o trabalho dos artistas que a integram
e voluntários internacionais, conta Zélito Fernandes, coordenador da colónia.
Em
muitos outros bairros, muitas outras associações só trabalham quando há
financiamento. Se não há, não realizam as colónias de férias. Assim, de acordo
com o activista, o problema “não é ‘falta de colónias de férias’, é a falta de
financiamento para colónias de férias”, elucida.
Quanto
a um aumento das crianças nas ruas da Praia, Zelito diz estar ciente da
situação. “Está a aumentar. No Plateau, e mesmo nas comunidades” de bairros
mais periféricos. Situações que se agravam.
Daí
que seja salientada a importância de apostar em associações que trabalhem com
crianças, enquanto parte da estratégia contra a problemática. “Se [essas
associações] já estão a tirar as crianças da rua sem financiamento, imagina se
houvesse um financiamento para fazer isso!”
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