quarta-feira, 27 de abril de 2022

COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA

Autoria: Ana Karoline Chaves Sousa, adolescente da Rede Peteca de Morada Nova-CE

Nesta quarta-feira, 27 de abril, a Rede Peteca lançou a Campanha Como se fosse da família, com o objetivo de prevenir e combater o trabalho infantil doméstico, um problema que afeta 92,7 mil crianças e adolescentes com idade entre 5 a 17 anos brasileiras, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (PNAD Contínua 2019).  Apesar de elevado, esse número representa somente uma parte do problema, pois se refere apenas ao trabalho infantil doméstico realizado em casas de terceiros.

 

A Rede Peteca estima, com base em pesquisa realizada anualmente junto aos alunos que participam do Programa, que para cada dez casos de trabalho infantil doméstico realizado para outras famílias, ao menos outras vinte crianças e adolescentes trabalham em suas próprias casas, cuidando dos irmãos mais novos e/ou da casa, situações que também configuram trabalho infantil, de acordo o Fórum Nacional de Prevenção do Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil – FNPETI.


O nome da Campanha é uma crítica às desculpas  dos empregadores que exploram o trabalho doméstico, tanto de crianças, quanto de mulheres. Quando são flagrados, muitos tentam se passar por bonzinhos, usando frases do tipo “eu trouxe ela para estudar”, “ela não é empregada, apenas me ajuda”, “a família não tem condições, estou fazendo um favor”, “onde ela morava não tinha escola”, “trouxe ela para brincar com meus filhos”, “aqui ela vive melhor que vivia, quando morava com a família” “ela é como se fosse da família”. A campanha pretende, pois, trazer reflexões sobre o comportamento de uma sociedade que historicamente explorou o trabalho das crianças e das mulheres. São histórias muito parecidas. Na maioria dos casos, são meninas pobres e mulheres negras, as quais foram negados a infância, a convivência familiar, a educação e demais direitos humanos.

 

Como se fosse da família não é uma campanha de peças elaboradas por agência de publicidade e sim de desenhos produzidos pelas próprias crianças e adolescentes. Eles e elas participam da Rede Peteca - Programa de Educação contra a Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente, iniciativa do MPT/CE, replicada nos demais estados através do Projeto MPT na Escola. Ao longo de um mês serão divulgados desenhos que abordam os vários aspectos do trabalho realizados por crianças e adolescentes, em casas de terceiros, ou nos próprios lares. Os três primeiros desenhos da campanha, foram produzidos pela adolescentes Ana Karoline Chaves Sousa, aluna do 9º ano da Escola Francisco Galvão de Oliveira, do município de Morada Nova-CE.

 

Piores formas

O trabalho infantil doméstico é uma das Piores Formas de Trabalho Infantil, prevista no Decreto 6.481/2008, que regulamentou o art. 3º, alínea “d”, da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, em cumprimento ao art. 4º, da mesma Convenção. A atividade está prevista no item 76 da citada lista, que relaciona outras 92 atividades prejudiciais à saúde, a segurança ou moral das crianças e adolescentes.

De acordo com Decreto 6481/2021, o trabalho infantil doméstico apresenta os seguintes  “prováveis riscos ocupacionais”: esforços físicos intensos; isolamento; abuso físico, psicológico e sexual; longas jornadas de trabalho; trabalho noturno;  calor;  exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos; tracionamento da coluna vertebral; sobrecarga muscular e queda de nível.

O Decreto aponta, também, “prováveis repercussões à saúde” das crianças ou dos(as) adolescentes que estão sujeitos(as) a estas atividades:  afecções músculo-esqueléticas, contusões; fraturas; ferimentos; queimaduras; ansiedade; alterações na vida familiar; transtornos do ciclo vigília-sono; DORT/LER; deformidades da coluna vertebral; síndrome do esgotamento profissional e neurose profissional; traumatismos; tonturas e fobias.

O item 75 do citado Decreto, aponta, ainda, como pior forma de trabalho infantil, o cuidado e vigilância de crianças, de pessoas idosas ou doentes”. Portanto, o trabalho de babás e cuidadores em geral também é considerado pior de trabalho precoce, contendo os mesmos riscos  ocupacionais e as repercussões à saúde verificados nos trabalhos domésticos gerais, sendo, portanto, atividades  impróprias para crianças e adolescentes, que são pessoas em condição peculiar de  desenvolvimento.

 

Conexões com o trabalho escravo

 

Nos últimos anos, muitas trabalhadoras têm sido resgatadas nas operações de combate ao trabalho escravo doméstico. A maioria começou a trabalhar quando ainda era criança ou adolescente.  Um dos casos mais conhecidos é da Madalena Gordiano que, aos 8 anos de idade, passou a servir uma família, em Minas Gerais, como se fosse uma empregada doméstica. Dentro da casa ela tinha muitas obrigações e nenhum direito. O crime foi praticado durante 38 anos e somente foi interrompido em novembro de 2020, numa operação de combate ao trabalho escravo doméstico. O caso de Madalena repercutiu na imprensa nacional e internacional.

Depois que a história de Madalena foi divulgada, vários outros casos foram relevados. No último domingo (24 de abril), o Fantástico divulgou mais um caso, o da Iolanda, uma idosa de 89 anos, que foi escravizada por cinco décadas. A família pensava que ela tinha falecido, pois há muitos anos não tinha notícias dela.

 

Os trabalhadores domésticos sofrem, ainda hoje, muitas discriminações, a ponto de muitas trabalhadoras pedirem que para não registrem a sua carteira “para não sujar”. Outras pedem para registrar “secretária do lar”. Essa discriminação está presente, também, no ordenamento jurídico. A Constituição Federal de 1988, apesar de ser chamada de “Constituição Cidadã”, tratou os trabalhadores domésticos como uma categoria à parte, reservando a ela apenas parte dos direitos trabalhistas assegurados aos demais trabalhadores (art. 7º, parágrafo segundo). É bem verdade que a Emenda Constitucional nº 73, resultante da chamada “PEC das Domésticas”, corrigiu boa parte das distorções da redação original, mas não as extinguiu totalmente, pois manteve condicionantes para que alguns dos referidos direitos possam ser assegurados a essa categorial profissional.

 

Embora a atual redação do parágrafo segundo da Constituição Federal, com a redação da Embora a EC 73, represente um grande avanço, em relação à redação original, o simples fato de ter sido mantido o referido parágrafo, dizendo quais os direitos que se aplicam aos trabalhadores domésticos, e apontando condições para garantia de outros direitos, por si só, já evidencia a discriminação, pois para nenhuma outra categoria de trabalhadores constam ressalvas e condicionantes. 

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