Autoria: Ana Karoline Chaves Sousa, adolescente da Rede Peteca de Morada Nova-CE |
Nesta quarta-feira, 27 de abril, a Rede Peteca
lançou a Campanha Como se fosse da família, com o objetivo de prevenir e
combater o trabalho infantil doméstico, um problema que afeta 92,7 mil crianças
e adolescentes com idade entre 5 a 17 anos brasileiras, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (PNAD Contínua 2019). Apesar de elevado, esse número representa somente
uma parte do problema, pois se refere apenas ao trabalho infantil doméstico
realizado em casas de terceiros.
A Rede Peteca estima, com base em pesquisa
realizada anualmente junto aos alunos que participam do Programa, que para cada
dez casos de trabalho infantil doméstico realizado para outras famílias, ao
menos outras vinte crianças e adolescentes trabalham em suas próprias casas,
cuidando dos irmãos mais novos e/ou da casa, situações que também configuram
trabalho infantil, de acordo o Fórum Nacional de Prevenção do Prevenção e
Erradicação do Trabalho Infantil – FNPETI.
O
nome da Campanha é uma crítica às desculpas dos empregadores que exploram o trabalho
doméstico, tanto de crianças, quanto de mulheres. Quando são flagrados, muitos
tentam se passar por bonzinhos, usando frases do tipo “eu trouxe ela para
estudar”, “ela não é empregada, apenas me ajuda”, “a família não tem condições,
estou fazendo um favor”, “onde ela morava não tinha escola”, “trouxe ela para brincar
com meus filhos”, “aqui ela vive melhor que vivia, quando morava com a família”
“ela é como se fosse da família”. A campanha pretende, pois, trazer reflexões
sobre o comportamento de uma sociedade que historicamente explorou o trabalho
das crianças e das mulheres. São histórias muito parecidas. Na maioria dos
casos, são meninas pobres e mulheres negras, as quais foram negados a infância,
a convivência familiar, a educação e demais direitos humanos.
Como se fosse da família não é uma campanha de
peças elaboradas por agência de publicidade e sim de desenhos produzidos pelas próprias
crianças e adolescentes. Eles e elas participam da Rede Peteca - Programa de
Educação contra a Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente, iniciativa
do MPT/CE, replicada nos demais estados através do Projeto MPT na Escola. Ao
longo de um mês serão divulgados desenhos que abordam os vários aspectos do
trabalho realizados por crianças e adolescentes, em casas de terceiros, ou nos
próprios lares. Os três primeiros desenhos da campanha, foram produzidos pela
adolescentes Ana Karoline Chaves Sousa, aluna do 9º ano da Escola Francisco
Galvão de Oliveira, do município de Morada Nova-CE.
Piores formas
O trabalho infantil doméstico é uma das Piores
Formas de Trabalho Infantil, prevista no Decreto 6.481/2008, que regulamentou o
art. 3º, alínea “d”, da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho,
em cumprimento ao art. 4º, da mesma Convenção. A atividade está prevista no
item 76 da citada lista, que relaciona outras 92 atividades prejudiciais à
saúde, a segurança ou moral das crianças e adolescentes.
De acordo com Decreto 6481/2021, o trabalho
infantil doméstico apresenta os seguintes “prováveis riscos ocupacionais”: esforços
físicos intensos; isolamento; abuso físico, psicológico e sexual; longas
jornadas de trabalho; trabalho noturno;
calor; exposição ao fogo,
posições antiergonômicas e movimentos repetitivos; tracionamento da coluna
vertebral; sobrecarga muscular e queda de nível.
O Decreto aponta, também, “prováveis
repercussões à saúde” das crianças ou dos(as) adolescentes que estão
sujeitos(as) a estas atividades:
afecções músculo-esqueléticas, contusões; fraturas; ferimentos;
queimaduras; ansiedade; alterações na vida familiar; transtornos do ciclo
vigília-sono; DORT/LER; deformidades da coluna vertebral; síndrome do
esgotamento profissional e neurose profissional; traumatismos; tonturas e
fobias.
O item 75 do citado Decreto, aponta, ainda,
como pior forma de trabalho infantil, o cuidado e vigilância de crianças, de
pessoas idosas ou doentes”. Portanto, o trabalho de babás e cuidadores em geral
também é considerado pior de trabalho precoce, contendo os mesmos riscos ocupacionais e as repercussões à saúde
verificados nos trabalhos domésticos gerais, sendo, portanto, atividades impróprias para crianças e adolescentes, que
são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.
Conexões com o trabalho escravo
Nos
últimos anos, muitas trabalhadoras têm sido resgatadas nas operações de combate
ao trabalho escravo doméstico. A maioria começou a trabalhar quando ainda era
criança ou adolescente. Um dos casos
mais conhecidos é da Madalena Gordiano que, aos 8 anos de idade, passou a servir uma família, em Minas
Gerais, como se fosse uma empregada doméstica. Dentro da casa ela tinha muitas
obrigações e nenhum direito. O crime foi praticado durante 38 anos e somente
foi interrompido em novembro de 2020, numa operação de combate ao trabalho
escravo doméstico. O caso de Madalena repercutiu na imprensa nacional e
internacional.
Depois que a
história de Madalena foi divulgada, vários outros casos foram relevados. No último
domingo (24 de abril), o Fantástico divulgou mais um caso, o da Iolanda, uma
idosa de 89 anos, que foi escravizada por cinco décadas. A família pensava que
ela tinha falecido, pois há muitos anos não tinha notícias dela.
Os trabalhadores domésticos sofrem, ainda
hoje, muitas discriminações, a ponto de muitas trabalhadoras pedirem que para
não registrem a sua carteira “para não sujar”. Outras pedem para registrar
“secretária do lar”. Essa discriminação está presente, também, no ordenamento
jurídico. A Constituição Federal de 1988, apesar de ser chamada de
“Constituição Cidadã”, tratou os trabalhadores domésticos como uma categoria à
parte, reservando a ela apenas parte dos direitos trabalhistas assegurados aos
demais trabalhadores (art. 7º, parágrafo segundo). É bem verdade que a Emenda
Constitucional nº 73, resultante da chamada “PEC das Domésticas”, corrigiu boa
parte das distorções da redação original, mas não as extinguiu totalmente, pois
manteve condicionantes para que alguns dos referidos direitos possam ser
assegurados a essa categorial profissional.
Embora a atual redação do parágrafo segundo da
Constituição Federal, com a redação da Embora a EC 73, represente um grande
avanço, em relação à redação original, o simples fato de ter sido mantido o
referido parágrafo, dizendo quais os direitos que se aplicam aos trabalhadores
domésticos, e apontando condições para garantia de outros direitos, por si só,
já evidencia a discriminação, pois para nenhuma outra categoria de
trabalhadores constam ressalvas e condicionantes.
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