terça-feira, 21 de janeiro de 2020

MEMÓRIAS DE UMA (EX)TRABALHADORA INFANTIL

Por Marcília Rocha*
Nos últimos dias tenho lido várias postagens nas redes sociais sobre trabalho infantil, além de notícias, reportagens e matérias publicadas na internet sobre o tema. Esse é um problema que mexe muito comigo. Hoje fiquei, mais uma vez, emocionada a ver, numa dessas matérias, a imagem de criança raspando mandioca numa casa de farinha (foto acima). Lembrei logo da minha infância (roubada). A imagem dessa menina não sai da minha cabeça, porque o que ela e outras crianças sofrem ainda hoje eu também vivenciei quando criança. Fez parte da minha vida. Ou melhor, ainda faz. Não superei o problema. Aqueles dias ainda hoje refletem na minha vida.  Muitos não têm ideia da gravidade do problema. Outros até tentam romantizar os debates sobre o tema, dizendo que não faz mal ou que “criança tem mesmo é que trabalhar para não ficar pensando ou fazendo coisa errada”. Mas eu, que vivenciei o problema, afirmo que não. Nenhuma criança deve trabalhar, e sim ser criança, por completo  e,  no tempo devido,  trabalhar. Cada coisa no seu tempo.

Mas é preciso reconhecer que avançamos, ao menos em termos de legislação. Quando eu era criança não havia a luta contra o trabalho infantil, até porque a Constituição Federal da época permitia essa prática. Aliás, eu sequer era chamada de criança e sim de “menor". Minha família não sabia que estava violando meus direitos. Considerava como parte da cultura, até porque eles também tinham passado pela mesma experiência e achavam natural que seus filhos também trilhassem o mesmo caminho. As outras famílias do meu município pensavam a mesma coisa. Essa era a forma que minha família via de me repassar o que seus antecessores lhes tinha ensinado. Eles até me orientavam para ter cuidado, para evitar acidentes e outras coisas mais graves,  mas não tinham ideia do risco e/ou confiavam,  penso eu,  nas orientações dadas e que íamos segui-las ao pé da letra. Para mim, e para demais crianças da época, era normal tudo isso, até havia "competição" para saber quem descascava mais mandioca.

Quando a atual Constituição foi aprovada eu já tinha 15 anos. Dois anos depois veio o Eca, mas eu não tomei conhecimento dessas leis na época. Somente na fase adulta soube da existência desses direitos. Soube há menos de duas décadas que criança e adolescente é Prioridade Absoluta.
Fico pensando: quantas famílias ainda hoje não tem noção dos direitos garantidos por lei a suas filhas e seus filhos? Quantas ainda pensam que o município ou o estado estão fazendo favor quando conseguem uma vaga ou um ônibus escolar para que eles não andam quilômetros para chegar à escola?  Muitos acreditam que o prefeito é bonzinho porque liberou o carro da prefeitura para que meninas e meninos cheguem até a escola em outra cidade, ou porque comprou uma ambulância para levar pacientes para serem atendido em hospital de outro município. Quando um político atende alguma necessidade do cidadão, muitos ainda acreditam que ele está fazendo algo a mais do que sua obrigação. Tudo isso por falta de conhecimento dos seus direitos.
Por força da Constituição e do Eca o poder público deve assegurar os direitos da criança e do adolescente. Mas os direitos previstos nessas leis ainda está longe ser efetivados. Decorridas três décadas, ainda vivenciamos muitas violação de direitos e suas inúmeras facetas. O Trabalho infantil é delas e é nosso dever, ético, moral e legal de lutar para erradica-lo. Eu me comprometo. Você se compromete?
#ChegaDeTrabalhoInfantil
*A autora é ativista de Direitos Humanos. Mora em Brasília-DF. Faz parte do Movimento Nacional em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.  Colabora com várias iniciativas e projetos de combate ao trabalho infantil, através do Peteca, do Conapeti e do Fórum DCA-DF. Em outubro de 2019 foi eleita Conselheira Tutelar Suplente do Distrito Federal (quadriênio 2020/2024).

Um comentário:

  1. Vamos erradicar todo e qualquer trabalho infantil. Não só no campo, pois muita gente acha que isso só acontece longe dos grandes centros urbanos.
    Quero ver o Brasil livre do trabalho infantil. Quero ver crianças e adolescentes na escola, não nas lavouras, casas de farinha, carvoarias, bares ou semáforos!
    Eu me comprometo!

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